Maria Cecília

MANIAC – Benjamín Labatut: uma reflexão

Maria Cecília 13 de janeiro de 2024 12 minutos

MANIAC 

Autor Benjamín Labatut

Editora Todavia

354 páginas

1. edição, 2023

 

Essa não é uma resenha, mas sim uma reflexão sobre o livro MANIAC de Benjamín Labatut. Decidi escrever sobre esse livro em especial porque ele aborda muitos assuntos que para mim, tanto na condição de leitora, quanto na condição de profissional que atua na área de tecnologia, causaram reflexões profundas.

Quando li na Revista Quatro Cinco Um uma notícia que anunciava o lançamento de um novo livro do autor chileno Benjamín Labatut, e que o objeto dessa obra era explorar a vida de John Von Neumann, pensei comigo mesma que obviamente eu iria comprar o livro. Seu livro anterior “Quando deixamos de entender o mundo”, publicado em 2020 em espanhol e, posteriormente, em 2021 em português, tece de maneira impecável biografia com ficção, a ponto de você não conseguir diferenciar um do outro. Imaginei que a proposta de MANIAC seria seguir nessa estrutura narrativa, onde fica difícil diferenciar fatos de ficção. O sucesso desse livro foi tão grande, que ele foi traduzido para mais de 22 idiomas até o momento, concorreu como finalista aos prêmios International Booker Prize e ao National Book Award em 2021 e entrou na lista do Barack Obama como um dos melhores livros daquele ano.

Portanto, considerando o imenso sucesso de “Quando deixamos de entender o mundo”, posso afirmar que as minhas expectativas e, muito provavelmente, as de outros leitores também, eram bem altas com MANIAC. E aqui, no início dessa reflexão, eu já gostaria de dizer que MANIAC superou todas elas.

O livro é dividido em 3 partes, as quais não são necessariamente lineares, mas que guardam uma correlação entre si, assim como, são desenvolvidas em uma linha temporal que evolui ao longo de quase 1 século. O mais estranho e genial do livro é como ele consegue correlacionar diferentes pessoas, de diferentes lugares do mundo, em épocas distintas, para falar sobre os mesmos temas como: genialidade, obsessão, loucura e obscuridade. Li muitas resenhas depois que eu terminei de ler, as quais contavam um pouco das histórias retratadas em cada uma das 3 partes. Cheguei à conclusão, que do meu ponto de vista, a experiência da leitura se torna melhor sem saber do que se trata exatamente cada uma dessas divisões do livro. Uma vez que descobrir, com o passar das páginas, as ligações entre elas e perceber como elas se desenvolvem em termos cronológicos é fascinante.

O que posso dizer é que a 1 parte conta a história real – em grande parte – de um físico e matemático que via a mudança de paradigmas na física, ao mesmo tempo, em que via surgir o nazismo na Alemanha. A 2 parte é a que aborda a vida de Von Neumann e, aqui, é importante ressaltar a escolha interessante e muito inteligente que Labatut fez de como contar a história desse personagem. Ele não dá voz ao próprio Von Neumann, ou seja, quem conta a história e as percepções sobre a sua personalidade, descobertas científicas, fatos históricos como Los Alamos, o Projeto Manhattan, o desenvolvimento do MANIAC e vários outros, são as pessoas reais que conviveram com ele.

Obviamente, se tratando de uma obra de ficção – algo que descobri que o autor faz questão de afirmar e que ele não gosta que seja descrita como romance – é a forma como Labatut imaginou que essas pessoas iriam descrever Von Neumann como ser humano e como cientista. Assim como, ele usou livros como referenciais (eles estão indicados nos agradecimentos) para moldar a narrativa em primeira pessoa, em que cada personagem retratado no livro tem espaço para dizer como enxergava Von Neumann. O que é brilhante, porque são muitas vozes e, é possível discernir com clareza a mudança do tom em algumas e, em outras, se torna um pouco mais difícil. Mas por outro lado, isso proporciona uma ampliação do campo de observação do leitor, já que este consegue através de muitos olhos e, os do próprio escritor, tentar entender quem John Von Neumann foi.

Eu fiquei me perguntando ao longo da leitura “Por quê ele fez essa escolha?” “Como ele selecionou as pessoas? Considerando que Von Neumann conviveu com muitas figuras geniais ao longo do século XX”. Assim, depois de terminar o livro, eu fui atrás das entrevistas de lançamento do MANIAC em que Labatut fala sobre o livro, e ele comenta porquê ele fez essa escolha. Ele disse que os deuses e os monstros são melhores quando são mudos. Essa resposta sintetiza a impressão que eu tive ao ler o livro, que na verdade, não está se falando apenas do gênio brilhante, ou, provavelmente, do maior matemático do século XX, está se falando na verdade de um protagonista-antagonista. E, pra mim, esse é o ponto central da obra.

As pessoas no geral tiveram algum grau contato com as descobertas científicas que Von Neumann fez junto com outros pesquisadores, isso porque elas reverberam até hoje, como a teoria dos jogos, o desenvolvimento da ciência da computação, etc. A lista de publicações científicas dele é imensa e extremamente relevante. E, por isso, nós (eu me incluo nisso) tendemos a achar que uma pessoa notável em termos de conhecimento científico, é também uma pessoa notável em termos de caráter e, aqui, mora o engano. O leitor é levado a conhecer Von Neumann desde a infância até o fim da sua vida e é, especialmente, no início desse vislumbre que somos levados a ficar fascinados com a inteligência dele. Até percebermos que não estamos lendo a jornada do Herói, mas a jornada de vida de uma pessoa real, com muitas qualidades e com muitos defeitos – ou sombras. Ou seja, estamos falando sobre a ambiguidade que existe nos seres humanos.

Labatut declarou que a primeira versão de MANIAC tinha 200 páginas a mais, o livro publicado tem quase 400, e que foi necessário um trabalho de revisão editorial intenso para se chegar a versão final. O título do livro tem duplo sentido – e isso não é spoiler – MANIAC é o acrônimo para o computador desenvolvido por Von Neumann na década de 1950, no caso, o “Mathematical Analyzer, Numerical Integrator and Computer”. Maníaco também é uma das características principais da mente de Von Neumann e, será que não é uma característica presente também nos personagens que compõe as partes 1 e 3 do livro?

Eu conhecia Von Neumann, mas não conhecia os personagens principais das partes 1 e 3, e fiquei chocada com a primeira parte e fascinada com a terceira, por achar a construção narrativa desta última genial. Quanto a parte sobre o personagem principal da obra, ela traz muitas reflexões para quem trabalha na área de tecnologia e com pesquisa. Digo isso porquê tenho posicionamentos extremamente contrários ao desenvolvimento de armas nucleares, um dos principais temas tratados na 2 parte, assim como, tenho sentimentos e reflexões opostos e, muitas vezes, solitários em relação a Inteligência Artificial (IA). Esse tema em específico foi o último em que Von Neumann dedicou tempo e atenção, ele acreditava que era possível uma máquina pensar e se comportar como um humano. Isso no início da década de 1950 e bastante influenciado pelo trabalho anterior de Alan Turing e de muitos outros pesquisadores que são citados no livro.

Labatut apresenta o tema da IA, de forma cronológica, mas ao mesmo tempo contrária ao hype atual. E ser contrário à muitas vezes uma adoração ou encantamento com a IA é algo que em mim ressoa forte. Não acho que a IA vai salvar o mundo ou vai destrui-lo. Ambas sãos visões que para mim soam simplistas. Acredito que a empolgação e o atendimento aos muitos interesses econômicos e políticos é algo que nos impede de enxergar criticamente e com lucidez o que está acontecendo e, como isso irá se desdobrar no futuro em termos de impactos – especialmente os negativos. Para Von Neumann esse tipo de sistema ou máquina era apenas uma questão de tempo. Ele tem uma citação famosa que é indicada no livro e que traduz a forma como ele pensava sobre o tema: “Você insiste que tem coisas que uma máquina não pode fazer. Se você me disser precisamente o que é que uma máquina não pode fazer, sempre poderei criar uma máquina que fará exatamente isso”.

Uma pessoa que não é citada no livro, até porque não está relacionada diretamente as histórias contadas, mas que veio na minha mente em muitos momentos quando falavam da concepção do MANIAC e do trabalho do Nils Aall Barricelli nele, o qual era focado em matemática, computação e biologia, foi o Jaron Lanier. Não sou pesquisadora na área de IA, mas já li muitos artigos científicos e de opinião sobre o tema, e os que me geraram mais reflexão são os do Lanier, não apenas os que tratam sobre IA, mas a visão dele sobre o desenvolvimento tecnológico do mundo nas últimas décadas. Artigos ou livros para mim são muito bons quando eu simplesmente paro na leitura e perco a noção de tempo. Isso porque eu leio rápido e várias páginas de livros ou artigos em um mesmo dia. Mas quando eu paro completamente em uma única página e fico refletindo por muito tempo sobre o que eu acabei de ler é quando eu sei que aquilo vai ter um impacto real na forma como eu penso ou percebo algo. MANIAC me causou isso em muitos momentos, eu reli várias vezes algumas partes, bem como Lanier me causou essa sensação de me perder no tempo em diferentes textos sobre IA que ele escreveu e de afirmar o quanto a história hoje no campo da tecnologia poderia ser diferente, devido a escolhas específicas feitas no passado. Lanier foi um dos grandes responsáveis por desenvolver e nomear o que conhecemos hoje como Realidade Virtual. Por isso, talvez a minha mente tenha feito essa conexão.

Há uma analogia entre esses temas no livro, no momento em que narram quando estavam desenvolvendo a primeira bomba atômica, os cientistas no geral não pensavam sobre o impacto dela, eles se sentiam entusiasmados de conhecer o que ainda não era conhecido, de descobrir o que ainda não tinha sido descoberto. O que é justamente o motivo pelo qual as pessoas pesquisam – para fazer descobertas – no entanto, isso não elimina, ou pelo menos, não deveria eliminar a nossa capacidade de agir de forma ética. Com espanto, descobri lendo o livro que Von Neumann foi o responsável por calcular a altura que deveria ser lançada e explodida a bomba em Hiroshima. Os seus cálculos foram feitos com a intenção de que a bomba tivesse um grande impacto e, essa sugestão foi aceita pelo governo americano – calcular para matar o maior número de pessoas – foi uma sugestão do Von Neumann. Um fato histórico que eu desconhecia completamente. Fiquei horrorizada.

Uma mente pode ser lapidada, orientada, nutrida para ser usada para o bem, para o progresso da sociedade, no entanto, o que fica claro no livro (lembrando que essa não deixa de ser uma visão do escritor), é a aparente desconexão que ele em essência tinha entre humanidade – o que significa ser humano – e a necessidade de usar sua mente para tornar absolutamente tudo no mundo, uma mera questão matemática, fria, mecânica e seguindo uma lógica que desconhece o que é empatia. A obsessão pela descoberta dos temas que lhe interessavam, deu a impressão no livro, que tudo e todos ao seu redor eram irrelevantes.

Nos dois livros citados de Labatut, “Quando deixamos de entender o mundo” e “MANIAC”, ambos falam sobre a nossa ausência de reflexão profunda, sobre momentos de ruptura que ocorreram no século XX e que ainda se desdobram em XXI. E, especialmente, em MANIAC, o limiar entre a genialidade e a loucura fica cristalino, os quais parecem estar levando a sociedade para um caminho obscuro, o qual mais uma vez, ela está sendo incapaz de enxergar. Reconheci alguns comentários em “MANIAC” que pareciam entrelinhas de comentários feitos em “Quando deixamos de entender o mundo”, foram poucos, mas os encontrei, na minha opinião foi intencional por parte do autor, mas eu posso estar errada. Quem sabe?

Uma das frases mais bonitas escrita no livro é uma das passagens em que Eugene Wigner narra a percepção dele sobre Von Neumann: “Jancsi era obcecado por história – sobretudo pela queda dos impérios antigos – , e embora seu ódio pelos nazistas fosse essencialmente ilimitado, ele também estava convencido de que saberia exatamente quando partir. Agora eu estremeço com a precisão de algumas de suas previsões, profecias que sem dúvida surgiam de sua incrível capacidade de processar informações e de filtrar a areia do presente através das correntes da história“. pp. 101.

Muitas reflexões são feitas nesse livro e diferentes perspectivas são apresentadas: pessimista, otimista e neutra. Há um limite para o conhecimento humano? Esse limite pode ser superado por uma IA? Ou essa é apenas mais uma ilusão que temos quanto ao desenvolvimento tecnológico? E, na minha visão, uma grande pergunta que fica subentendida: O que é estar desperto?

A mente de Labatut é uma mente de correlações e, sinceramente, esse trabalho de escrita intensa que ele tem no desenvolvimento de ficção com fatos reais é impressionante e admirável. Ele merece todo o reconhecimento que está tendo como escritor e espero que esse texto tenha convencido você a ler Benjamín Labatut.

E, o final, bem o fim do livro é algo que eu adoraria comentar, mas não vou estragar a sua leitura.

Li muitas resenhas, mas vou deixar as 3 que eu mais gostei e que foram publicadas até o momento. Não recomendo a leitura delas antes de você ler o livro.

Resenhas

The Washington Post

New York Times

Revista Quatro Cinco Um

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